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​Ameaça à existência dos corais: entenda o que é o branqueamento e seu impacto global



Imagine a sua casa: provavelmente esse é o seu lugar preferido, afinal de contas, é na nossa casa onde encontramos conforto e aconchego. É o local onde nos sentimos seguros. Agora imagine que essa casa seja modificada, e que esse local passe a representar exatamente o oposto. Isso certamente afetaria muito a nossa qualidade de vida, não? Para os corais essa realidade não é diferente, pois, assim como nós, eles precisam de um ambiente adequado para “levar a vida numa boa’’.
 
No artigo anterior nós abordamos detalhes da íntima relação de cooperação obrigatória entre os corais de águas rasas e as microalgas (zooxantelas) que vivem nos seus tecidos. Essas zooxantelas, além de serem responsáveis por dar as cores vibrantes aos corais (Figura 1), dão também a maior parte do alimento necessário para sua sobrevivência, por meio do processo de fotossíntese. Porém, a beleza desse relacionamento pode ser interrompida por um fenômeno conhecido como branqueamento.
 
Como o próprio nome sugere, no processo de branqueamento o coral perde sua cor, deixando o esqueleto calcário visível através de seu tecido agora transparente (Figura 2), além de perder também sua principal fonte de alimento. Isso acontece devido a um agente causador de estresse, como por exemplo o aumento da temperatura do oceano, fazendo com que as zooxantelas aumentem seu metabolismo e, de forma descontrolada, passem a produzir substâncias que são tóxicas ao coral. Como uma forma de se proteger dessas substâncias tóxicas, o coral então expulsa as zooxantelas, rompendo esse frágil relacionamento. Com isso, esses animais ficam sem os nutrientes necessários para o seu desenvolvimento, tornando-se frágeis e vulneráveis a doenças. Além disso, o seu crescimento e reprodução também podem ser afetados. A casa agora está vazia, sem cor e a um passo de desmoronar. Porém, dependendo da intensidade e duração do branqueamento, os corais conseguem sobreviver e reatar sua relação com as zooxantelas, mas também podem acabar literalmente “morrendo de fome”.
 
 
 
 
 
 
Fatores que levam os corais ao branqueamento
Até o momento, as principais ocorrências de branqueamento têm sido relacionadas ao aumento da temperatura da água, uma preocupante consequência da crise climática atual (Hoegh-Guldberg, 1999, Hughes et al., 2018). No entanto, esse fenômeno também pode ser provocado por outras perturbações no ambiente, tais como: variações no pH e na salinidade da água, elevada incidência de luz, acúmulo excessivo de matéria orgânica e partículas (sedimentação), poluição por esgoto, metais pesados e o derramamento de petróleo. A utilização de protetores solares de base química, que possuem em sua composição substâncias tóxicas como a oxibenzona, também pode afetar a saúde dos corais e torna-los mais suscetíveis ao branqueamento (Raffa et al., 2018).
 
 
 
Impactos globais do branqueamento
O branqueamento de corais já é observado há mais de 20 anos, associado principalmente ao El Niño. Esse fenômeno atmosférico-oceânico provoca o aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico tropical e altera em escala global nosso clima, ocorrendo de maneira cíclica porém cada vez mais intensa. O primeiro evento de branqueamento em escala global aconteceu em 1998, o segundo evento levou 12 anos para acontecer (2010), e o terceiro evento em escala global aconteceu cinco anos depois (2015). O aumento da temperatura do planeta, desencadeado principalmente por atividades humanas como a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento, tornou os eventos de branqueamento mais frequentes. De 2015 pra cá, o branqueamento passou a ser observado praticamente todos os anos, numa intensidade cada vez maior. Em 2017, 91% dos corais branquearam no mundo todo, sendo que para 29% deles foi de forma irreversível, ou seja, os animais morreram (Skirving et al., 2019). Diante de tantos agentes estressores e de um ambiente em constante mudança, os corais não têm tempo hábil para se adaptarem. Dessa forma, se essas mudanças no ambiente marinho continuarem nesse ritmo, nós certamente estaremos diante do colapso de um ecossistema inteiro.
 
 
 
Branqueamento dos corais brasileiros
Apesar de eventos de branqueamento serem observados ao longo da costa brasileira desde o final da década de 1990 (Castro e Pires, 1999), raramente se observava mortalidades. Esse ano (2019) tivemos o maior branqueamento já registrado no Brasil, tanto em intensidade quanto em duração. O período de ocorrência do El Niño trouxe uma elevação recorde na temperatura das águas onde vivem os recifes da Costa do Descobrimento (sul da Bahia), uma das áreas mais importantes do Atlântico Sul devido à sua biodiversidade marinha. O monitoramento realizado pelo Projeto Coral Vivo apontou um aumento de 2,6 °C na temperatura da água entre janeiro e maio de 2019, quando comparado com o mesmo período de 2018. Em algumas áreas mais rasas, a temperatura chegou a 31,4 °C, sendo que a temperatura média normal seria em torno de 27 °C. O branqueamento foi tão severo (Figura 3) que cerca de 90% das colônias de coral-de-fogo (Millepora alcicornis) não se recuperaram e morreram. Até espécies mais resistentes como os corais-cérebro (gênero Mussismilia) tiveram taxas de branqueamento próximas de 80%. Após seis meses, os corais-cérebro ainda estão em processo de recuperação (Figura 4). O branqueamento também afetou ilhas oceânicas como o Atol das Rocas (RN), o Arquipélago de Fernando de Noronha (PE) e a Ilha da Trindade (ES), além do litoral norte de São Paulo e algumas áreas na Região dos Lagos no estado do Rio de Janeiro.
 
 
 
E se os corais desaparecessem?
Estima-se que aproximadamente três quartos dos recifes do mundo já estejam ameaçados e podem ser totalmente perdidos até 2050, sendo o branqueamento a principal causa de morte (Hoegh-Guldberg et al., 2015). Sem eles, a biodiversidade marinha será drasticamente comprometida, pois os recifes de coral servem de berçário, local de alimentação e abrigo para mais de 25% de todas as espécies marinhas conhecidas. Assim, os corais são essenciais para garantir a saúde e a vida nos oceanos. Porém, a importância dos recifes de coral não se restringe à água salgada: a vida na terra como a conhecemos também depende muito desses ecossistemas.
 
Em regiões com recifes de coral, a fauna marinha é incrivelmente rica e provê alimento e sustento para muitas comunidades humanas que se formaram próximas a esses locais. Com o desaparecimento dos corais, a diminuição drástica dessa biodiversidade afetará a pesca e pode deixar 275 milhões de pessoas em situação de fome extrema em cerca de 100 países. Um recife de coral morto também deixa de ser um atrativo turístico e, com isso, milhões de empregos param de ser gerados, podendo levar a perdas mundiais de US$ 9,8 trilhões em serviços sociais, econômicos e culturais a cada ano (Costanza et al., 2014).
 
Os recifes de coral não fornecem apenas proteção para os seres marinhos, mas também para nós humanos. Eles exercem uma função importantíssima fazendo papel de “para-choque” contra as ondas marítimas. Essas ondas são amortecidas no choque direto com os corpos recifais, que barram até 99,9% de toda essa energia (Costa et al., 2016).
 
É preciso que os recifes de coral estejam vivos e saudáveis para manter a casa em ordem e, assim, garantir todos os benefícios fornecidos por eles. Mas como isso pode ser feito? O primeiro passo é entender a importância desse ecossistema para a vida marinha e para a humanidade. Associado a isso, a adoção de medidas para reduzir a emissão de gases poluentes como o dióxido de carbono (CO2), responsáveis pelo aquecimento do planeta e por intensificar a ocorrência de branqueamento nos corais.
 
A mudança no clima é global, não tem fronteiras. Estamos falando de efeitos que são causados pelo coletivo. É a mudança de atitudes de cada um de nós, somada à governança e políticas públicas adequadas que resultará de fato em benefícios para a preservação dos corais. Se trabalharmos em conjunto, enquanto há tempo, podemos salvar esse ecossistema fascinante, e com isso, quem sabe salvarmos a nós mesmos!
 
No próximo artigo, iremos abordar as iniciativas e projetos que estão sendo conduzidos ao redor do mundo (fazendas de corais, transplante, evolução assistida, bancos genéticos etc.) na tentativa de evitar a extinção dos corais. O ReefBank conta com a parceria do Projeto Coral Vivo (patrocinado pela Petrobras) e do Instituto Coral Vivo, e com o apoio financeiro da Fundação Grupo Boticário e do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio).
 
 
 
Autores: Leandro Godoy1,2, Amanda Amaral3 e Carla Elliff4
 
 
 
1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS
 
2Instituto Coral Vivo
 
3Universidade Nilton Lins / INPA
 
4Universidade de São Paulo, USP
 
projetoreefbank@gmail.com