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Chamado de boi do mar, atum pode ser todo aproveitado e rende até torresmo


É verdade que o tom avermelhado do atum se assemelha ao da carne bovina. Mas o que motivou o chef pernambucano André Saburó a chamar o peixe de "boi do mar" foi outra coisa: a possibilidade de aproveitá-lo por inteiro.
Há 10 anos, sentia-se incomodado com o desperdício para fazer os sushis e sashimis da Quina do Futuro, restaurante do Recife que pertence a sua família desde 1986. Num jantar no CT Boucherie, de Claude Troigros, no Rio de Janeiro, olhou a imagem de um boi dividido em cortes amplamente difundidos pelo mercado no jogo americano e teve um insight: "tenho que estudar o peixe como se fosse um boi".
“A gente aproveita tudo do boi. Não é possível que eu não consiga aproveitar tudo do atum".
O comparativo entre os dois animais foi uma virada de chave interna e deu origem a um trabalho único na gastronomia nacional, que atrai a atenção de craques como o paraense Thiago Castanho. "Ele passou cinco dias comigo para praticar e tentar replicar a técnica com o pirarucu, o rei dos rios".
 Em vez de identificar parte a parte e denominá-las conforme referências técnicas, Saburó decidiu aproveitar o conhecimento do público e relacioná-las às peças bovinas.
"Se eu falasse a localização, o consumidor não ia nem conseguir imaginar. Mas dizer, por exemplo, que tal região tem mais gordura, como um cupim, deixa o conhecimento mais fácil. O cliente gosta dessa brincadeira e inovação".
Dois fatores externos ajudaram nessa empreitada. O primeiro foi a montagem de um hub da empresa Oceanus no porto do Recife voltado para o peixe tipo exportação, caracterizado pela pesca long line, no qual cada isca atrai somente um atum, praticada de 200 a 2.000 quilômetros de distância do porto, a depender da época do ano.
Com no máximo 135 quilos, esse atum apresenta melhor aparência (é vermelho cereja e translúcido), textura (é mais firme) e sabor (suave). A qualidade permite a entrega uma experiência sensorial satisfatória para além do lombo.
O segundo foi o estágio no Japão. Graças ao amigo Alex Atala, o cozinheiro pôde aprender in loco as minúcias do Den, o melhor restaurante da Ásia segundo a publicação 50 Best, bem como da peixaria parceira responsável por fornecer os insumos. "Queria entender esse fluxo".
Atualmente, Saburó e a equipe abrem cinco atuns de aproximadamente 40 quilos por semana — quase uma tonelada no mês. Tudo isso levar às mesas do salão, além dos clássicos da culinária japonesa, criações próprias que conversam com a gastronomia brasileira feitas com a cauda até a bochecha.
Agora, só o couro vai para o lixo. Por que a própria coluna a gente aproveita para fazer caldo".
 Sarapatum
Tal qual um sarapatel, o prato junta num ensopado de cebola, pimentão, coentro, alho e tomate os nervos, a cartilagem, os pedaços gordurosos sem formato e por vezes o coração do atum. "Por um ano, ofereci como cortesia com um potinho de farofa. Só entrou no cardápio quando os clientes criaram o hábito e começaram a querer uma porção maior".
Stinco
Primeiro item desperdiçado pela quantidade de nervos e o baixo rendimento, o rabo do atum foi transformado num stinco bovino. "Foi um estudo demorado, de quase um ano, até ficar bom. Usamos tecnologia de cozinha, como sous-vide e pasteurização do osso para evitar a fermentação". É preparado na churrasqueira com manteiga e molho teriyaki e servido ao lado de arroz agridoce.
Kama-toro
Valorizado no Japão, o pedaço fininho localizado atrás da bochecha do peixe é cheio de colágeno e gordura, assim como o cupim. "Temperamos com sal e levamos direto para a grelha. Bastam três minutinhos de cada lado para chegar no ponto".
Shoulder
Músculo interno da barbatana peitoral, é como se fosse o ombro do atum. "É a área que mais se parece com carne bovina pela irrigação do músculo. Também tem uma quantidade de fibra e colágeno que, quando grelha, deixa o formato redondinho com textura firme, mas não seca". Quando disponível na Quina do Futuro, é assado na brasa com sal, pimenta-do-reino e manteiga.
Torresmo
A membrana que fica entre uma vértebra e outra da espinha dorsal rende um ótimo torresmo quando desidratada e frita por imersão. "No restaurante, vamos desidratando de pouco em pouco. Não está no cardápio porque precisa juntar uma quantidade grande até dar uma porção. Só quem é cliente habitué sabe".
Atum de sol
Para Saburó, a pontinha do akami (área vermelha do atum) muda de fibra e faz lembrar a fraldinha. Com ela, o chef faz uma versão de carne de sol. Com uma quantidade de sal mais tímida que para as peças bovinas, faz uma cura de três dias na geladeira, sendo dois à embalado a vácuo. "Esse processo matura o peixe, tira a água e altera a textura". Para servir, sela na manteiga de garrafa e coloca no prato junto de farofa e aligot de inhame com queijo de coalho.
 
Por Gabrielli Menezes – Uol
Foto: Divulgação