Cultura
Um peixe nos domínios da carne
No país da carne, a estrela pode ser um peixe. Digamos com mais precisão que é um corte de peixe disfarçado de bife de chorizo; uma ilusão de óptica com tudo o que tem direito. É trazido até minha mesa para que o veja antes de ser preparado, sobre uma tábua daquelas que muitos utilizam para a carne. É um corte de bom tamanho. De cor vermelha intensa, mostra faixas de gordura esbranquiçada bem marcadas ao longo da peça e sobretudo na parte inferior, como se fosse uma pedaço de carne bovina. Tem um aspecto inquietante: você sabe que é um peixe, mas a cabeça te leva a pensar em uma vaca. É parte do cardápio servido por Fer Rivarola e Gabriela de la Fuente no El Baqueano, o restaurante deles no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, e o vejo como a travessura de um cozinheiro decidido a chamar a atenção para o papel do peixe em um país que parece viver de costas para o mar. Por outro lado, parece-me uma proposta redonda, dessas que eu gostaria de ter na mesa com muito mais frequência. Principalmente quando chega a vez da extremidade do falso bife, mais estreita e com mais faixas de gordura. É onde a carne entra em sintonia perfeita com a gordura e propicia os bocados mais suculentos e suaves: sabor, ternura e delicadeza ao mesmo tempo.
Cortava-o e pensava que lembrava o presunto, diferenças à parte Fernando Rivarola
Na carta é apresentado como bife de chorizo, embora esclareçam que procede do pacu, um peixe de rio até bem pouco habitual no Paraná, que em alguns lugares da bacia amazônica é chamado de gamitana e cachama; ou cherna na bacia do Orinoco, entre outros. O pacu era um peixe habitual nas águas do Paraná até que as condições do rio afetaram sua sobrevivência e a de outras espécies como o sável, quase desaparecidas de suas águas. Desde então é um bem escasso cuja pesca só é permitida se as capturas forem devolvidas ao rio.
As ironias se acumulam em toda essa história. A chamada de atenção do El Baqueano se concretiza com um peixe de rio criado em um centro de piscicultura em Apóstoles, na província de Misiones, perto da fronteira com o Brasil.
No princípio, a relação de Rivarola com o pacu foi tradicional, mas quando chegavam exemplares maiores e cortava o lombo começou a ver certa semelhança com um bife de chorizo – o lombo curto da carne bovina – e procurou a forma de acentuar essa proximidade. Impregnou-o com sumo de beterraba para acentuar a cor sem mudar o sabor e o deixou descansar durante um breve período de tempo, realçando as faixas de gordura que lembram as da carne de vaca.
Na carta é apresentado como bife de chorizo, embora seja um pacu, peixe de rio até bem pouco tempo habitual no Paraná
Foi o início de um jogo que alimentou outros mais. O mais notável é o do presunto de rio, também nascido da carne do pacu, embora desta vez a parte usada tenha sido aquela grudada na espinha dorsal que habitualmente é mais avermelhada do que na maioria dos peixes. O próprio Rivarola conta: “O pacu tem essa característica, carne bem branca, rosada em todos os lados e na parte da espinha dorsal é bem vermelha. Cortava-o e pensava que lembrava o presunto, diferenças à parte. Então começamos a fazer uma salga bem curta, de um ou dois dias, e o pusemos para secar no porão, que no inverno está a 14 graus. Quanto mais tempo o deixamos secar, mais avermelhado fica e mais se parece com o presunto”.
É servido em cortes transversais, muito finos, condimentados com gotas de azeite de oliva e apresenta uma textura mais inteira que a de outros peixes semicurados em sal ou defumados, como o bacalhau ou o salmão. Funciona: é saboroso e, principalmente, é o ponto de partida para uma cozinha a que gosta de contar histórias e navegar contra a corrente. Também faz parte de um jogo que Fernando Rivarola e Gabriela de la Fuente gostam de fazer com outros peixes, como o chanchito de mar, um peixe de rocha, de carne branca e saborosa, que no El Baqueano é tratado como se fosse salmão. IGNACIO MEDINA- El País